Muitas são as dúvidas e as incertezas que surgem em momentos como o que estamos vivendo, época em que toda a estrutura econômica está abalada e que uma crise de abrangência global “bate à porta”. No cenário que nos é apresentado é praticamente certo que a pandemia de COVID-19 mais cedo ou mais tarde afetará as relações contratuais, mas o que não é tão certo é: Como ficarão os contratos em meio à esta pandemia?.
Se você possui algum conhecimento na área do direito provavelmente já pensou em 02 coisas: caso fortuito ou força maior. Esta é muito provavelmente a principal discussão jurídica no que se diz respeito aos contratos que enfrentamos neste momento.
CONCEITUALIZAÇÃO E EXPLANAÇÕES SOBRE A APLICABILIDADE DOS INTITUTOS JURÍDICOS DO CASO FORTUITO E DA FORÇA MAIOR
Os juristas se dividem entre a possibilidade ou não da aplicação do caso fortuito ou força maior nos contratos em meio à pandemia do COVID-19. E a opinião deste que vos escreve é a seguinte: como tudo no direito, depende! Vejamos:
O Art. 393 do Código Civil determina o seguinte:
CC – Art. 393: O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não houver por eles se responsabilizado.
Parágrafo único: O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Ou seja, o caso fortuito e a força maior são excludentes de responsabilidade contratual e, sendo assim, quando ocorrem não há penalidade para o descumprimento do contrato. Mas em que se diferem?
Em uma análise bem simples, pode-se afirmar que os dois institutos possuem 02 pontos de convergência. Vejamos: I) Ambos (caso fortuito e força maior) são fatos necessários, ou seja, iriam acontecer independente da vontade do ser humano; II) Ambos são supervenientes, ou seja, acontecem depois que as partes estabelecem o contrato.
Em que então se diferem o caso fortuito e a força maior? Simples: enquanto o caso fortuito tem como característica a imprevisibilidade, a força maior tem como característica obrigatória a inevitabilidade, ou seja, ainda que fosse possível prever o acontecimento seria impossível evita-lo.
Assim temos que a aplicabilidade prática dos institutos jurídicos do caso fortuito e da força maior dependem da existência de possibilidade fenomênica (espacial e temporal) de cumprimento da obrigação contratualmente assumida.
Imaginemos que determinada casa noturna tenha firmado um contrato com um cantor sertanejo para que este realizasse um show no mês de abril de 2020, entretanto, em razão da pandemia foi determinada a proibição de funcionamento de casas noturnas em todo país, logo, o show não poderá acontecer e o contrato não poderá ser cumprido.
Neste caso estão presentes os requisitos para a força maior, uma vez que: I) o fato foi necessário (a pandemia iria acontecer independente da vontade do ser humano); II) foi superveniente (aconteceu após as partes estabelecerem o contrato) e III) embora fosse possível prever a chegada da COVID-19 ao Brasil e a necessidade da quarentena, era impossível de se evitar o mesmo.
Mas não é apenas isto que configura a ocorrência de força maior. É de extrema importância que a natureza do contrato seja afetada de tal forma que seja impossível o cumprimento da obrigação, como no exemplo acima.
Já nos contratos agrários, embora seja até possível se vislumbrar o cumprimento dos requisitos para a ocorrência de força maior, é muito pouco provável que a pandemia de COVID-19 afete diretamente a natureza do contrato ao ponto de impedir o cumprimento da obrigação.
Por exemplo, é muito pouco provável que a base objetiva de um contrato de arrendamento seja afetada pela COVID-19 ao ponto de impedir seu cumprimento, uma vez que o arrendatário poderá cultivar sua plantação normalmente, sem maiores interferências em razão do vírus.
Nem se diga dos casos em que os contratos agrários (ou contratos provenientes da exploração da atividade econômica do agronegócio) tiverem como garantia a emissão de uma CPR – Cédula de Produto Rural, já que, nesses casos, por força de Lei, fica totalmente afastada a possibilidade de invocação dos institutos do caso fortuito e/ou da força maior.
Neste sentido:
LEI FEDERAL nº. 8. 929/94 – Art. 11: Além de responder pela evicção, não pode o emitente da CPR invocar em seu benefício o caso fortuito ou de força maior.
Nessa mesma toada seguem os demais contratos agrários, é muito difícil de se imaginar que o trato com a terra, objeto da maioria dos contratos, seja diretamente afetado pela pandemia do COVID-19.
CONCEITUALIZAÇÃO E EXPLANAÇÕES SOBRE A APLICABILIDADE DOS INSTITUTOS JURÍDICOS DA TEORIA DA IMPREVISÃO E DA ONEROSIDADE EXCESSIVA
Entretanto, o que pode realmente ser apontado nos contratos agrários é o disposto nos artigos 317, 478 e 479 do Código Civil, as popularmente conhecidas Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva.
Vale apena conferir:
CC – Art. 317: Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
CC – Art. 478: Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
CC – Art. 479: A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Ambos os institutos do direito (imprevisão e onerosidade excessiva)permitem a revisão do contrato, entretanto, o instituto da Onerosidade Excessiva além de permitir a revisão permite também a resolução do mesmo, ou seja, a extinção do mesmo sem o seu cumprimento.
Os dois institutos são bem semelhantes e dividem os seguintes pressupostos: I) que o contrato seja de execução diferida ou continuada; II) que haja alguma alteração fática entre o momento da contratação e o momento da execução; III) que essa alteração fosse inesperada e imprevisível quando da celebração do contrato e IV) que a alteração tenha promovido desequilíbrio entre as prestações.
Entretanto, o instituto da onerosidade excessiva se difere em 02 aspectos: I) além de permitir a revisão contratual (tal qual a imprevisibilidade) permite também a resolução contratual, ou seja, a extinção do contrato sem seu cumprimento e II) um quinto pressuposto, que o desequilíbrio nas prestações provoque um ônus excessivo à uma das partes e uma vantagem excessiva à outra.
Para demonstrar como isso pode ser aplicado na prática, imaginemos uma situação hipotética em que uma terra seja arrendada para o cultivo de amendoim por um valor de X reais mensais, valor calculado levando-se em conta a capacidade produtiva do solo e o valor médio do proveito econômico que o arrendatário teria com a venda de sua produção de amendoim. Entretanto, ainda em uma situação hipotética, imaginemos que com a pandemia do COVID-19 o valor da saca de amendoim que seria de 2Y reais passa a ser de Y reais e com isso o proveito econômico do arrendatário diminui consideravelmente. Nesta situação vemos que, em virtude de um acontecimento extraordinário e imprevisível, a prestação do arrendatário se tornou excessivamente onerosa e o arrendador obteve uma vantagem uma vez que a base de cálculo do valor do arrendamento fora alterada consideravelmente em razão do COVID-19, logo, é possível, em razão da onerosidade excessiva das parcelas, a modificação do valor do arrendamento, visando o equilíbrio contratual.
CONCLUSÃO
Em suma, ainda é incerto o que decidirão os Tribunais em relação aos efeitos jurídicos da pandemia de COVID-19, sendo certo apenas que as lides acontecerão e, provavelmente, em grande escala.
O que nos parece é que, ao menos em relação aos contratos agrários, a aplicação dos institutos jurídicos do caso fortuito ou da força maior não vem a ser a mais indicada, sendo de melhor congruência técnica a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão ou da Onerosidade Excessiva.
Autores: Gabriel Dóro e Matheus Quessada, do escritório Custódio Quessada & Oliveira Advogados com atuação exclusiva em Direito Agrário e do Agronegócio.